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sexta-feira

Diário de Bordo IV - Personagens: B., 38, traficante e mãe.


Logo pela manhã, partindo para favela, a preocupação dos amigos de Natal. "Rapaz, isso é perigoso. Não tem nada melhor pra você fazer não?"
Falam tantas vezes isso, que de vez em quando dá mesmo vontade de ir para o "outro lado", do conforto, o lado do "não enxergo".
Nessas horas, nem penso. Ligo a camera, e vou.

O Encontro
Favela do Japão. Foto: Anderson França
Na hora marcada, no local marcado, tudo em cima, chega ela.
Para os padrões locais, é rica. Ostenta roupas e acessórios que impressionam os moradores da comunidade.
Maior traficante local, B., 38, segue, há anos, uma disciplina diária., que a  tornou extremamente respeitada e bem sucedida nas suas ações. Acorda bem cedo, contabiliza e acerta vendas e pendências, assegura a "conjuntura" dos pontos de venda, cumpre horários para fornecimento e transporte de mercadoria, separa o "arrego" (propina) para não levar o "baculejo" ("dura") dos policiais. Liga para conferir se estão todos nos seus respectivos postos, checa o trajeto, limpa a arma, verifica a munição que vai usar no dia, olha pela janela e,  por fim, sim, dá um último retoque na maquiagem.
No espelho, refaz a história de 10 anos no tráfico. "Claro que eu não queria isso pra mim. Penso nisso todo dia. Vim parar aqui por causa do meu marido. Peguei um 12,(art. 12) saí, ele continua (preso). Eu já estava nessa até o caroço, continuei no tráfico, dessa vez, sozinha. Fora que a gente sai da cadeia e não consegue trabalho de nada."
Ao sair de casa e partir para os becos das favelas de Natal, cruza a cidade que está em plena expansão. Olha pros prédios novos, as ruas bem asfaltadas, muitos "estrangeiros" (profissionais contratados por empresas instaladas lá, que puxam mão de obra do Sul e Sudeste), com seus carros do ano, suas famílias "ajeitadas": Mulher de traços finos, filhos branquinhos, perfumados, indo pra escola. A Natal de hoje está muito diferente de 10 anos atrás. Às vezes, sente como se fosse ela a turista. E às vezes, como se fosse o nativo que sabe bem onde encontrar o remédio para o estranho à procura de prazer. "Atendo todo mundo. Do bacana ao lascado. Pouca diferença tem entre um e outro, quando estão de mãos estendidas esperando o pacote de pó e o troco."
Quanto vale 
Estamos falando de R$1.800 por dia em vendas. Esse valor, em Natal, é altíssimo. Os traficantes não dispõem de armas de grosso calibre como aqui. Muitos ainda usam facas e um 38. Acontece que, com o "gênio ruim" que alguns tem, dá pra fazer um estrago com essas armas.Tem muita morte por faca em Natal. Na casa onde fiquei hospedado, o filho da empregada doméstica foi morto há quase um mês com facadas, tortura com cabo de vassoura e 4 tiros. Envolvido com o tráfico, não conseguiu saldar uma dívida de um valor insignificante para os padrões do crime organizado no Rio, o que resultou numa morte trágica, na frente da irmã de 10 anos. No velório, durante a noite, foi visitado por outros traficantes, que vinham confirmar se realmente estava morto. Percebi que, onde não há hierarquia do crime, a crueldade é maior do que a costumeira pois, cada grupo, em cada boca de fumo, tem suas próprias regras, e não prestam satisfação a mais ninguém.
 

O dia a dia
B. conhece sua clientela. Conhece o contexto. Sabe quem é quem, dentro e fora do crime, dentro e fora da polícia. Afinal, 10 anos no tráfico não é pra qualquer um. Se angustia ao ver que pessoas de alto poder aquisitivo saem do trabalho em prédios luxuosos pra ir cheirar na esquina da favela. "Fazer o quê, quem vai morrer é eles. Eu me garanto." Só não vende pra menor. "Outro dia, veio um menino aqui, bonitinho, de uns 9 anos, pedindo brita (nome usado para o crack). Perguntei a ele: menino, nessa idade pedindo brita?" O menino respondeu que havia ganho um real para ser avião para um maior viciado.  "Pois eu lhe dou dois se esse safado vier aqui pegar ele mesmo. Vá lá e chame."
No caminho para a favela, Zona Sul de Natal. Foto:A.França
Vingança de mulher
No meio da entrevista, levanta a mão, e mostra o celular. "Tá vendo? Meu filho. Ia fazer 15 anos por agora. Os PMs mataram, carnaval passado. Quatro PMs. Entraram na favela, e foram certinho nele. Ou confundiram ele com outro, ou querem me atingir. Mas, cada um deles vai morrer. Vou me vingar. Meu filho nunca entrou nisso, que eu controlava mais que muita mãe por aí. Um deles morreu ontem. Faltam três. Estou nisso até eu morrer, ou até vingar meu filho."
Dor de mãe, meu amigo, é tudo parecido.
Eu fui percebendo a mulher que ela abrigava dentro de si. Parou de falar em vingança e olhou pra Tia Nalba.  "Nalba é uma mulher muito boa, sempre me ajudou com conselho, já procurou trabalho pra mim. Vejo que ela carrega a Casa nas costas, e ajuda essas crianças. Meu dinheiro não faz bem pra ela, mas, o que ela precisar, eu vou ajudar. Essas crianças aqui são muito pobres. Como é lá no Rio?" 
Falei pra ela que aqui, no Rio, R$1.800 se faz em duas horas de trabalho na boca. E que a pobreza é igual. Além de durar menos no crime, porque o ritmo é mais pesado, nas favelas há o dobro de preconceito. Enquanto em Natal se sofre preconceito por morar em favela, no Rio é por isso e por ser nordestino. Em São Paulo então, tem até ataques.
"Traz um projeto pra cá. Ajuda a gente.Se a gente tivesse uma ajuda, tenho certeza que muita mulher não ia estar mais no crime."
De fato, conheci uma traficante depois que conversei com B., que com o dinheiro do tráfico montou um comércio dentro da favela, e hoje não estpa mais no crime. Mas, nem todas conseguem juntar dinheiro. Algumas, escondem do marido e conseguem fazer um pé de meia. Mas, se a polícia chega e descobre, leva tudo.

Lado A, Lado B
De vez em quando, Tia Nalba intervinha. As duas se conhecem bem, compartilham as mesmas dores. Marido que abandona família, preocupação com os filhos, com a favela, com a vida. Ali, pensam parecido.
E B. entrou por necessidade no crime. Pensei de imediato no Empregabilidade, do Grupo Cultural AfroReggae, coordenado pelo Norton Guimaraês, ex-criminoso.
Um dos hotéis de Natal, construídos de 3 anos pra cá.
Pensei, enquanto falavam, no fluxo de pessoas que estão indo a cada mês morar em Natal, uma "terra de fartura". Pensei que posso estar presenciando a repetição de uma história que já conhecemos.
"Os meninos estão se preparando. Tá tendo mais trabalho (mais venda de drogas), a tendência é piorar."
A entrada de mulheres no tráfico é uma opção que os homens não tem. Meninas de 12 anos podem escolher a infelicidade que terão na vida:  o tráfico ou a prostuição.


Lado A, Lado B. Foto: Anderson França
Enquanto percorri Natal, vi várias meninas se prostituindo  na Orla. Bobagem sua, carioca, me perguntar: "Mas, e a polícia?" Sabemos muito bem como funciona, exportamos essa "tecnologia". Há meninas que são inclusas no pacote de turismo de muitos estrangeiros. 
Tia Nalba e ela se deram as mãos, e eu fiz a foto. Da ativista e da traficante. Dois lados, duas questões que a sociedade potiguar ainda não percebeu com clareza.

Ao sair, o carro me leva de volta à cidade. Ruas largas, fachadas impressionantes, pessoas sorrindo, turistas nas falésias e o jargão "Natal, morada do Sol" para mim, nunca soou tão frio.

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