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sexta-feira

Diário de Bordo IV - Personagens: B., 38, traficante e mãe.


Logo pela manhã, partindo para favela, a preocupação dos amigos de Natal. "Rapaz, isso é perigoso. Não tem nada melhor pra você fazer não?"
Falam tantas vezes isso, que de vez em quando dá mesmo vontade de ir para o "outro lado", do conforto, o lado do "não enxergo".
Nessas horas, nem penso. Ligo a camera, e vou.

O Encontro
Favela do Japão. Foto: Anderson França
Na hora marcada, no local marcado, tudo em cima, chega ela.
Para os padrões locais, é rica. Ostenta roupas e acessórios que impressionam os moradores da comunidade.
Maior traficante local, B., 38, segue, há anos, uma disciplina diária., que a  tornou extremamente respeitada e bem sucedida nas suas ações. Acorda bem cedo, contabiliza e acerta vendas e pendências, assegura a "conjuntura" dos pontos de venda, cumpre horários para fornecimento e transporte de mercadoria, separa o "arrego" (propina) para não levar o "baculejo" ("dura") dos policiais. Liga para conferir se estão todos nos seus respectivos postos, checa o trajeto, limpa a arma, verifica a munição que vai usar no dia, olha pela janela e,  por fim, sim, dá um último retoque na maquiagem.
No espelho, refaz a história de 10 anos no tráfico. "Claro que eu não queria isso pra mim. Penso nisso todo dia. Vim parar aqui por causa do meu marido. Peguei um 12,(art. 12) saí, ele continua (preso). Eu já estava nessa até o caroço, continuei no tráfico, dessa vez, sozinha. Fora que a gente sai da cadeia e não consegue trabalho de nada."
Ao sair de casa e partir para os becos das favelas de Natal, cruza a cidade que está em plena expansão. Olha pros prédios novos, as ruas bem asfaltadas, muitos "estrangeiros" (profissionais contratados por empresas instaladas lá, que puxam mão de obra do Sul e Sudeste), com seus carros do ano, suas famílias "ajeitadas": Mulher de traços finos, filhos branquinhos, perfumados, indo pra escola. A Natal de hoje está muito diferente de 10 anos atrás. Às vezes, sente como se fosse ela a turista. E às vezes, como se fosse o nativo que sabe bem onde encontrar o remédio para o estranho à procura de prazer. "Atendo todo mundo. Do bacana ao lascado. Pouca diferença tem entre um e outro, quando estão de mãos estendidas esperando o pacote de pó e o troco."
Quanto vale 
Estamos falando de R$1.800 por dia em vendas. Esse valor, em Natal, é altíssimo. Os traficantes não dispõem de armas de grosso calibre como aqui. Muitos ainda usam facas e um 38. Acontece que, com o "gênio ruim" que alguns tem, dá pra fazer um estrago com essas armas.Tem muita morte por faca em Natal. Na casa onde fiquei hospedado, o filho da empregada doméstica foi morto há quase um mês com facadas, tortura com cabo de vassoura e 4 tiros. Envolvido com o tráfico, não conseguiu saldar uma dívida de um valor insignificante para os padrões do crime organizado no Rio, o que resultou numa morte trágica, na frente da irmã de 10 anos. No velório, durante a noite, foi visitado por outros traficantes, que vinham confirmar se realmente estava morto. Percebi que, onde não há hierarquia do crime, a crueldade é maior do que a costumeira pois, cada grupo, em cada boca de fumo, tem suas próprias regras, e não prestam satisfação a mais ninguém.
 

O dia a dia
B. conhece sua clientela. Conhece o contexto. Sabe quem é quem, dentro e fora do crime, dentro e fora da polícia. Afinal, 10 anos no tráfico não é pra qualquer um. Se angustia ao ver que pessoas de alto poder aquisitivo saem do trabalho em prédios luxuosos pra ir cheirar na esquina da favela. "Fazer o quê, quem vai morrer é eles. Eu me garanto." Só não vende pra menor. "Outro dia, veio um menino aqui, bonitinho, de uns 9 anos, pedindo brita (nome usado para o crack). Perguntei a ele: menino, nessa idade pedindo brita?" O menino respondeu que havia ganho um real para ser avião para um maior viciado.  "Pois eu lhe dou dois se esse safado vier aqui pegar ele mesmo. Vá lá e chame."
No caminho para a favela, Zona Sul de Natal. Foto:A.França
Vingança de mulher
No meio da entrevista, levanta a mão, e mostra o celular. "Tá vendo? Meu filho. Ia fazer 15 anos por agora. Os PMs mataram, carnaval passado. Quatro PMs. Entraram na favela, e foram certinho nele. Ou confundiram ele com outro, ou querem me atingir. Mas, cada um deles vai morrer. Vou me vingar. Meu filho nunca entrou nisso, que eu controlava mais que muita mãe por aí. Um deles morreu ontem. Faltam três. Estou nisso até eu morrer, ou até vingar meu filho."
Dor de mãe, meu amigo, é tudo parecido.
Eu fui percebendo a mulher que ela abrigava dentro de si. Parou de falar em vingança e olhou pra Tia Nalba.  "Nalba é uma mulher muito boa, sempre me ajudou com conselho, já procurou trabalho pra mim. Vejo que ela carrega a Casa nas costas, e ajuda essas crianças. Meu dinheiro não faz bem pra ela, mas, o que ela precisar, eu vou ajudar. Essas crianças aqui são muito pobres. Como é lá no Rio?" 
Falei pra ela que aqui, no Rio, R$1.800 se faz em duas horas de trabalho na boca. E que a pobreza é igual. Além de durar menos no crime, porque o ritmo é mais pesado, nas favelas há o dobro de preconceito. Enquanto em Natal se sofre preconceito por morar em favela, no Rio é por isso e por ser nordestino. Em São Paulo então, tem até ataques.
"Traz um projeto pra cá. Ajuda a gente.Se a gente tivesse uma ajuda, tenho certeza que muita mulher não ia estar mais no crime."
De fato, conheci uma traficante depois que conversei com B., que com o dinheiro do tráfico montou um comércio dentro da favela, e hoje não estpa mais no crime. Mas, nem todas conseguem juntar dinheiro. Algumas, escondem do marido e conseguem fazer um pé de meia. Mas, se a polícia chega e descobre, leva tudo.

Lado A, Lado B
De vez em quando, Tia Nalba intervinha. As duas se conhecem bem, compartilham as mesmas dores. Marido que abandona família, preocupação com os filhos, com a favela, com a vida. Ali, pensam parecido.
E B. entrou por necessidade no crime. Pensei de imediato no Empregabilidade, do Grupo Cultural AfroReggae, coordenado pelo Norton Guimaraês, ex-criminoso.
Um dos hotéis de Natal, construídos de 3 anos pra cá.
Pensei, enquanto falavam, no fluxo de pessoas que estão indo a cada mês morar em Natal, uma "terra de fartura". Pensei que posso estar presenciando a repetição de uma história que já conhecemos.
"Os meninos estão se preparando. Tá tendo mais trabalho (mais venda de drogas), a tendência é piorar."
A entrada de mulheres no tráfico é uma opção que os homens não tem. Meninas de 12 anos podem escolher a infelicidade que terão na vida:  o tráfico ou a prostuição.


Lado A, Lado B. Foto: Anderson França
Enquanto percorri Natal, vi várias meninas se prostituindo  na Orla. Bobagem sua, carioca, me perguntar: "Mas, e a polícia?" Sabemos muito bem como funciona, exportamos essa "tecnologia". Há meninas que são inclusas no pacote de turismo de muitos estrangeiros. 
Tia Nalba e ela se deram as mãos, e eu fiz a foto. Da ativista e da traficante. Dois lados, duas questões que a sociedade potiguar ainda não percebeu com clareza.

Ao sair, o carro me leva de volta à cidade. Ruas largas, fachadas impressionantes, pessoas sorrindo, turistas nas falésias e o jargão "Natal, morada do Sol" para mim, nunca soou tão frio.

terça-feira

Diário de Bordo - Fotos


Com a ex-traficante que hoje aprende uma profissão com Tia Nalba


Em conversa com B. e K., traficantes.

A ativista e a traficante se encontram.

Oficinas dos Sonhos

Favela do Japão

Kelly Lima



no caminho

Diário de Bordo III - Personagens: Tia Nalba.


Na Favela do Japão, o confronto não é apenas com armas.
É no olhar, no argumento, nos recursos que só a mente feminina possui.
Mães, avós, irmãs, amigas, ativistas, traficantes.
Erinalba, moradora da comunidade há 18 anos, é a principal articuladora local. Chegou do interior, com seus filhos, e foi morar na favela, pelas circunstâncias. As mesmas circunstâncias que lhe deram forças para reagir. Criou seus filhos sozinha, na máquina de costura. Percebeu que outras mulheres tinham também suas dores, sofriam caladas, e as crianças cresciam sem algumas referências importantes, como por exemplo, o pai.
O marido de Tia Nalba envolveu-se com drogas e com  o tráfico. Praticava roubos nas piores fases para manter o vício. Apesar do desequilíbrio, da desordem e do impacto que ele provocava na família, ela reagia, com os valores inversos, de amor, de força, de cuidado. Dentro de casa ela aprendeu o valor de ser articulada.
Nas entregas de suas encomendas, aumentava o contato com as vizinhas e seus filhos. Com o passar do tempo, esses meninos a procuravam, para lhe pedir conselhos. Alguns, já no crime, contavam com ela para ter alguma orientação para vida.
Passou a receber pessoas necessitadas em sua casa. Ajudava os que vinham do interior para a cidade.
Sua casa passou a ser uma referência. Todos ali a procuravam, desde conselhos, até abrigo e comida.
Cooperava, como voluntária, nos projetos que eram realizados para a comunidade. Até que foi contratada e trabalhou, por 8 anos, na Visão Mundial, organização protestante, voltada para ações humanitárias.
Quando o projeto acabou, em 2006, ela manteve sua casa de portas abertas, mesmo não podendo comprar para todos o que antes podia.
Hoje, as crianças da Favela do Japão não andam pelos becos. Nem em Lan Houses. Elas tem um costume, de acordar, ir pra escola, e na volta, ir pra "Casa".
Lá, encontram outras crianças, moradores, voluntários dispostos a dar aulas de reforço. A Casa está sempre aberta.Na visita que fiz, uma das salas da casa estava ocupada por uma família que está passando uns dias lá, porque teve a luz cortada em casa. Para entrar na Casa, é só bater palmas no portão. Alguém virá, e você estará em casa. A alegria é presente. Muitas crianças e adolescentes, cuidando uns dos outros, sempre com olhares curiosos para os novos que chegam.
Essa Casa, bem que podia ser pra sempre.
E a Tia Nalba, bem que podia ser chamada Mãe.

domingo

Diário de Bordo II - Natal

Kelly Lima, ativista na favela do Japão, onde o tráfico é controlado por mulheres. E a resistência também.

Segundo dia de trabalho, Domingo de Páscoa.
Natal é uma cidade nova. Pelo menos, essa é a impressão que tenho ao cruzar a cidade, Zona Sul -  Zona Norte - Zona Oeste.
O setor imobiliário está em crescimento, em uma hora, vi 12 condomínios residenciais enormes (no padrão de SP) sendo construídos por toda cidade. Em 2014 haverá Copa também aqui, a cidade está fervilhando em alguns setores.
No litoral, dezenas de prédios de luxo foram erguidos de 3 anos pra cá.
O "Minha Casa, Minha Vida", aqui, constrói unidades em regiões de classe média, para a classe média, em regiões desenvolvidas. Diferente do Rio, em que o projeto prioriza regiões de favela.
Não existe o número de favelas como temos no Rio. E uma estranha estratégia: As favelas estão sendo "escondidas". Cercadas por grandes construções, muros e viadutos.
Em Natal, é comum encontrar pessoas que tenham 2 carros. As pessoas se endividam para comprar pickups, Land Rovers, e lançamentos. Há facilidades de financiamento, as pessoas compram, mas excedem comprando mais de um carro.
Os taxistas reclamam que é muito raro fazer corridas que tornem a profissão sustentável.
O tráfico de drogas é fraco diante do que observamos no Rio, mas as vendas aumentam a cada ano, pela presença cada vez maior de turistas.
É vendido muito solvente, cola, crack e pessoas com mais dinheiro compram cocaína. Maconha é bastante consumida, em regiões específicas do Litoral, como a Praia da Pipa, no sul.
Quem compra o pacote de turismo na Holanda, já pode incluir uma prostituta.
O turismo sexual e infantil é notório e aberto.
Muitas meninas, a partir dos 12 anos, já entram no circuito.
Na favela do Japão, onde tenho feito visitas, o tráfico de drogas é controlado por mulheres.
Mulheres se confrontam, do lado do bem e do mal.
Há mulheres controlando o tráfico e a favela, e há mulheres realizando bravamente projetos para crianças, jovens, mulheres e homossexuais.
Considerando que estão inseridas numa cultura muito machista, e são mulheres de favela, sofrem muito na defesa de seus objetivos.
Na favela do Japão, onde existe um alto índice de crime relacionado ao tráfico e também a presença de prostituição infantil, Kelly Lima, moradora da favela, estudante de Ciencias Sociais na UFRN, cujo pai é dependente químico, com dois filhos e sem marido, mantém - como voluntária - um projeto com mais de 42 crianças na sua comunidade, iniciado por sua mãe, Erinalba, mais conhecida como Tia Nalba.
Tia Nalba, desde que chegou na favela há 18 anos, abre sua casa para a comunidade. Pais, mães, traficantes, todos a procuram para ter conselhos, ou passar um tempo em sua casa, ela é uma "mãe social".
Elas são apoiadas pela Igreja Batista Viva, mas esse apoio não é suficiente. Foi nessa igreja que acompanhei uma apresentação de alunos do projeto, interpretando trechos da Paixão de Cristo.
Se articulam com padres e outros agentes sociais.
As "mulheres do tráfico" já são objeto de estudo de monografias na UFRN.
Curioso que, com mulheres no comando, o tráfico é menos violento, e o embate entre os dois lados é mais aguçado.
Mulheres versus mulheres.
Conversei com Kelly e sua mãe por quase 2 horas.
Amanhã, fotos e a história delas. Porque fazem, porque acreditam, apesar de.
Feliz de saber que temos pessoas trabalhando intensamente em todas as favelas, histórias que não imaginamos, histórias comoventes, em todo lugar, favela é sempre favela.
Boa noite, amigos e amigas.
Salve a mulher nordestina.

sábado

Diário de Bordo I - Natal

Alguém me perguntou ontem no msn: "Dinho, porque Natal?"
É uma pergunta simples, que revela uma curiosidade simples: porque especificamente a cidade de Natal.
Nessa linha, desperta outras perguntas. Poderia serMaceió? Cuiabá?
E, já que estou no Rio, onde as favelas tem mais habitantes que muitos municípios brasileiros - estamos falando de centenas de milhares de pessoas - se eu quero estudar os fenômenos sociais relacionados à favela (já que estou inserido nesse contexto no Rio de Janeiro) não seria melhor tomar um ônibus de R$2,40 e ir no Complexo do Alemão ou no Complexo da Maré,onde já tenho muitos contatos e experiências?
Minhas respostas na rede devem ser criativas e provocadoras. Provocar novas idéias e caminhos. Porque descobri que tenho no meu círculo de relacionamento pessoas criativas e provocadoras. Pessoas que me motivam a ser criativo, a pensar mais, a falar mais. Sou privilegiado.
Portanto, a resposta a essa pergunta tinha que atender de forma mais ampla.
Não existe apenas uma resposta, existem várias. Eu vou dar algumas, outras, não. Mas, nenhuma delas está relacionada com fazer turismo aqui, ou o sol ou as praias dessa cidade. De fato são belíssimas, passei de carro pela orla e vi, mas, definitivamente, praia de nordeste não é o que me  motiva juntar economias e vir.
Esse sentimento, que de forma alguma é de desprezo às belezas locais, deve estar inconscientemente relacionado com essa impressão que tenho de que, no Rio, temos tudo que precisamos, para o bem e para o mal.
Que, em termos de cidade, história, pessoas e problemas, já temos tudo, até exportamos para as artes o que somos. E poderíamos ser personagens de uma novela das oito, com seus esteriótipos e reducionismos roteirísticos soap opera de quinta categoria e núcleos com seus respectivos protagonistas.
Temos o núcleo dos milicianos, dos políticos,dos evangélicos, núcleo dos PMs, dos ativistas, das ONGs, dos artistas, jornalistas, e alguns de nós até se esforçam pra serem vistos como personagens.
Seja a leitura que fazem de nós no "Tropa", seja na cobertura das operações policiais, seja no filme de animação de Carlos Saldanha, seja no de Vin Diesel, seja no Call of Duty (jogo de ação que tem uma versão dentro de uma favela carioca), acho que estamos todos, cariocas, debaixo de muita pressão da mídia, dos olhos do mundo, no meio do furacão.
Somos, como diria alguém, "a cidade do momento".
Vivemos nosso dia a dia para entreter alguém que, do outro lado, se deleita num pacote de 3kg da mais insossa e gordurosa pipoca, ou com um joystick na mão.
Penso que estamos tão devassados que nossas reações não estão calibradas. Estamos, no Rio, surtados. Tudo que fazemos pode virar filme - e o pior é isso! - pode virar mesmo, e estamos carregados de dramaticidade e ilusão.
Qual será o próximo grande personagem de sucesso de bilheteria? Quem vai virar o filme da vez? O menino-repórter da favela? Os mediadores? Um novo Cap. Nascimento, que dessa vez volta à ativa no melhor estilo Rambo 4, velhão, e decide virar comandante de UPP e promover a Terceira Guerra Mundial, alimentando o imaginário de vingança contra os pobres - por serem pobres - com patrocínio da Petrobras e Lei de Incentivo à Cultura?
Eu tenho uma lista aqui de nomes, desde Escadinha, na década de 80, até você, de pessoas que podem da noite pro dia virar o próximo filme.
Putz, falei Escadinha. Pronto. Aguardem 6 meses.
Se você acompanhou essa minha linha de raciocínio, mesmo que discorde em uma parte ou outra, quero que entenda que, para que eu compreendesse a gênese de alguns fenômenos relacionados ao tráfico de drogas, ao consumo, à reação da sociedade e do governos, eu precisava ver uma favela num estágio inicial ou de menores proporções, num lugar onde o glamour local não esteja relacionado à narco-cultura.
Tinha de ser um lugar fora do eixo RJ-SP, porém, um centro urbano, com atrativos locais que pudessem ser considerados produtos de consumo turísticos, para onde afluem pessoas de todo Brasil e exterior.
Pensei no Sul e no Centro Oeste. Mas, faltavam vários elementos. Eu queria a presença da praia e favela, mais contrastes, encontrar na mesma cidade zonas de muita riqueza e muita pobreza, que se relacionam geograficamente.
Além do mais, Centro Oeste é rota de tráfico de vendas no atacado. Não era o que eu queria.
Vitória, não. Pernambuco, não. Ambas possuem muitos projetos sociais, não estão no estágio que eu queria. João Pessoa não. Mora muito rico, os crimes são relacionados à contravenção. Ainda não era o que eu queria.
Bahia, não. Não tenho conexões suficientes lá, para ser inserido em favelas.
Natal. Estudei a geografia da cidade e percebi que Natal tem semelhanças com o Rio. Possui Zona Norte, mais pobre que Zona Sul - onde estão muitas mansões, e Zona Oeste extremamente pobre e violenta.
Pronto.
Liguei pra TAM, há 1 mês a trás, e procurei passagens para um fim de semana, que era quando eu podia ir. Me informaram do feriado, e de uma promoção. Estava certo que as coisas tinham se encaixado. 

E se encaixaram.
Ontem, em Extremoz, um município de características rurais, tive contato com algumas pessoas importantes na minha viagem aqui. Foi num sítio, afastado da cidade, onde pudemos traçar estratégias e roteiros.
No meio do mato, vi pessoas morando em casinhas, próximas da areia, sem muros nas casas, muitas nas ruas, sentadas em cadeiras de balanço, sentindo o cheiro da praia que, aqui, é em todo lugar.
Conheci Neto, um católico, que é colaborador em ações locais com os franciscanos da Toca de Assis.
Tive uma tarde de sábado muito melhor que planejei, com amigos que decidiram me levar nas favelas, me apresentar pessoas que estão sendo protagonistas aqui, isso tudo no meio da roça, do capim, do café fresco, e com uma sensação de estar fazendo o que acredito.
Agora, ás 5 da manhã de sábado, estou me preparando pra ir conhecer Kelly, que coordena um projeto na favela do Japão, na cidade de Natal, e é estudante de Ciências Sociais da UNIP.
Quero conversar com ela, entender sua história, sua relação com os traficantes locais, que são poucos porém violentos e suas expectativas.
Quero entender a gênese.
Enquanto estou aqui, penso em todos que estarão no PAZcoa no Alemão. Queria estar lá.
Queria ver minha rapaziada sorrindo, feliz de estar se sentindo útil. Quem trampa na favela, faz primeiramente pra se sentir útil. Pra recuperar a autoestima.
Pra não deixar acabar o pouco que nos restou de humanidade.

quarta-feira

Na reportagem exibida pelo Bom Dia Brasil, e nos noticiários da GloboNews no decorrer do dia, o assunto voltava, ameaçador: A falta de mão de obra especializada no Brasil, e a possibilidade de apagão no mercado de trabalho.

Analistas de RH, acadêmicos, analistas de mercado, todos, unânimes em apontar para o crescente hiato que vai se formando entre vaga e profissional disponível.

As universidades formam profissionais com grade disciplinar obsoleta, as novas tecnologias demoram a ser digeridas e sistematizadas, as informações circulam nos meios empresariais de forma surpreendentemente rápida e no fim, os professores fingem que ensinam, os alunos fimgem que aprendem. E tudo vai por água abaixo na primeira entrevista de emprego.

Saem sem a menor perspectiva concreta de carreira e sem vivências úteis, pois os estágios geralmente posicionam os profissionais em funções de suporte pouco interadas com o aprendizado.

Queria só destacar aqui que não vejo, nesse caso, culpa nos professores universitários. Eles seguem diretrizes das suas instituições e, portanto, as limitações delas.

A culpa também não é da sociedade do conhecimento, da pós-modernidade, do Dalai Lama, não há culpados aqui. Há os que não estão percebendo o momento histórico em que nos encontramos - e isso é no mundo todo.

Somos uma Pangea, novamente. Praticamente, caminhamos para um padrão de vida relativamente próximo, nos centros urbanos. As mesmas marcas, mesmas metas, mesmas carreiras, tudo it´s same.

O que realmente não restará, pedra sobre pedra que nao seja derrubada, é esse modelo de RH que temos hoje, atrasado, especializado - não em pessoas, não em empresas competitivas - mas na década de 80 e, quando muito, 90.

O RH brasileiro pensou que essas décadas durariam para sempre.
E sentou-se, confortável em sua cadeira-diretor de couro marrom-cafona, esperando que, ao oferecer uma vaga, os currículos chegassem brilhando em papel couchê, borrifados de perfume e com 8 páginas de qualificações internacionais.

E tão surreal que dá dó.
Aliás, por falar em surrealismo, essa semana tivemos o Brite 2011, encontro de turismo realizado no Rio de Janeiro. 
Alguns amigos foram e resolvi perguntar a um deles no Twitter sobre o que seria, se haveria uma pauta para inclusão de assuntos ligados a mão de obra da favela. Fui respondido por uma outra pessoa (moral: no Twitter, e na vida, responda apenas o que for perguntado a você) e a resposta foi que, para um encontro de turismo no Rio, ter pauta sobre favela seria surreal.

Surreal:
Classificação morfossintática:
- [surreal] adjetivo masc singular .
- [surreal] adjetivo fem singular .
Sinônimos: irreal inacreditável exótico diferente implacável inimaginável .
Antônimos: real explicável .
Palavras relacionadas: bizarro louco transgressor imaginário irreal algo não real irado insano .


Entende?
Numa cidade em que metade dela, algo como 6 milhões de habitantes, moram em favelas, falar da inclusão das favelas no mercado de trabalho é surreal. 
Seja porque o mercado brasileiro acredita que está na Alemanha, seja por pura e simples alienação, porque "favelado precisa é de polícia, não de emprego", eu fico pensando que, se já está difícil pra quem pode investir em sua educação, quanto mais para os que não podem? Quando as empresas vão se conectar às universidades para formar inside seus profissionais?
Existe um país, juro que existe, de nome Estados Unidos, não muito longe daqui, presidido por um negro de sorriso muito simpático, onde o regime de mercado chama-se capitalismo, coisa que ainda não conhecemos, no qual as universidades e empresas se comunicam intensamente sobre a formação dos profissionais.
Mais: quando vão incluir a mão de obra vinda de camadas de baixa renda? Qual será o legado de 2014 e 2016? Os moradores de comunidades não terão acesso a emprego especializado? Nenhuma empresa vai levantar a mão para dizer: "Alô, nós podemos treinar." porque ambas as mãos estão encalacradas em dinheiro?
Estamos falando de quê, geração Y,Z Alpha, o escambáu, que já chega em mais uma década sem oportunidade? Então morador de comunidade tem mais é que servir café e carregar mala? É essa a herança do mercado hoteleiro, que parece não se importar em mover uma moeda para absorver e treinar mão de obra? É esse o desenvolvimento prometido? É surreal ter a favela na pauta de um estado cujo principal produto é o turismo? Surreal falar de favela - classe D - que consome hoje em valores brutos mais que a classe B?

Pense por você mesmo. Principalmente se for diretor de RH, e tem interesse em manter seu valioso emprego nos próximos 5 anos.


Bom Dia Brasil


Anderson França é TED Host, e acha isso um luxo.

domingo

Complexo do Alemão, 2 Abr 2011.


Uma das coisas que mais gosto de fazer nessa vida: fuçar lugares.
No Complexo, lugar é o que não falta pra isso. Até porque, já fuçei a Maré inteira.
Me encontrei com os integrantes de um grupo cultural chamado Descolando Idéias e alguns amigos, entre eles participantes do "Parceiros do RJ", um projeto do RJ TV.
Na Joaquim de Queiroz, que costumo chamar de "já histórica", pegamos nossas garrafinhas de água, demos um abraço no Guilherme, gerente do Santander Alemão, e subimos.
Mais íngrime que o Cantagalo.
Dia lindo, a visão que tivemos do alto do morro foi, como a visão de todo alto de morro carioca, incrível.
Um dia, lá na frente, morar na favela vai ser caríssimo. Se os sócios da RJZ Cirella forem lá, vão desistir de construir prédio em São Paulo.
Passamos por alguns pontos turísticos, ao menos pra nós. Lajes onde traficantes vigiavam amplos trechos da comunidade, trilhas na mata, uma cruz que não foi derrubada por policiais porque dois padres se abraçaram a ela, a trilha que os traficantes usaram para fugir no dia da ocupação, a Cufa, o lago, muitos lugares.
Não sabia disso, mas o Complexo tem vegetação abundante e faz frente com a Floresta da Tijuca em muitos quesitos. Seria um ótimo lugar pra trilhas e caminhadas ecológicas.
Encontramos uma cápsula de 7.62. Depois outra, depois outra, depois 10. E duas moedas de 1 real. Com as quais compramos sacolé, na descida do morro.
Sol forte, mas e daí.
Estávamos livres, num lugar lindo, celebrando principalmente a liberdade de andar num território antes proibido. Isso dá uma sensação de cidadania, rapaz, que nem dá pra explicar.
Aquele lugar não é mais do Tota, do FB, do Pezão. É meu. É seu. É de quem chegar.
Que dure pra sempre.
Depois de subir todas as ladeiras, e dar uma volta inteira, descemos pra comer churrasco na casa de Nathalia.
Nathalia podia ser minha filha. Concluímos isso debaixo de sol forte. Eu vejo na Nathalia um futuro pro Complexo. Sinto o mesmo pelos outros.
Todos desse grupo se doam muito. Se entregam muito em seus propósitos.
Comemos pra caramba. Acho que comemos por quase 3 horas seguidas. Toda produção de carne bovina do Uruguai estava lá.
Até tem. Mas não como o que tínhamos. Daqueles que você come direto na tábua, fica com as mãos cheias de linguiça, Coca-Cola no balde, farofa, êta porra.
Conversamos muito, nos divertimos com histórias, sonhamos.
Quem quiser ir na próxima, eu aviso.