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sábado

Complexo Celebridade.


Em 2008 pude assistir um documentário gravado no Complexo do Alemão entitulado "Complexo: Universo Paralelo", de Mario e Pedro Patrocínio, dois irmãos portugueses, que decidiram registrar o cotidiano de moradores, traficantes, artistas e mobilizadores sociais em diversas comunidades do Complexo.

A primeira vez que estive no Complexo foi em 2006 e achei tudo muito confuso. Gente por todo lado, muita motocicleta, as ruas eram calçadas e ruas ao mesmo tempo e eu não tinha muita facilidade em favelas com morros. Era acostumado com Vila Aliança e Vila Kennedy, planas e a Maré. Não entendia a geografia do lugar, haviam vários locais onde o acesso era pouco recomendado, a Serra da Misericórdia era um lugar que eu tinha curiosidade de conhecer.

Mas esse documentário foi uma importante referência para o que eu tentava definir na minha mente sobre o Complexo. Uma comunidade ocupada por traficantes fortemente armados, penso que era uma das maiores e mais ameaçadoras fortalezas do crime organizado que já existiu nesse país. Diferente de outros lugares onde ia, o Alemão tinha um "abuso", os traficantes eram mais atirados, desafiadores. A comunidade convivia com essa marra e isso, de certa forma, era incorporado ao comportamento dos mais jovens, sem que eles sentissem.
O pouco que tenho registrado sobre o Complexo antes de sua ocupação é, pelo menos, alguma coisa. Fato é que boa parte das pessoas que falam sobre o Alemão datam seus primeiros registros após a ocupação pelas forças militares epelos repórteres da Globo. As opiniões que são emitidas se alimentam da constelação de fontes que ficaram evidentes após a ocupação. 

Não que seja problemático os jovens do Alemão serem fontes. Pelo contrário, isso é saudável. Mas é perceptível a indução (não quero usar a palavra "manipulação") dos veículos de mídia nesse processo. 

Sempre foi assim, essa relação: empresas de jornalismo, publicitários e sociedade. Logo, o que pode dar um "bom conteúdo" ou uma "boa pauta", entenda-se audiência, é estimulado. 

Daí, há os que provocam certas informações e há os que se permitem provocar. Isso acontece em todo lugar, é natural. O Alemão saiu da condição de inimigo número um da cidade para garoto-propaganda do Rio Pacificado, que precisa mostrar o que há de novo e badalado na comunidade, em detrimento das mortes sem investigação, dos assaltos sem investigação, do tráfico que vai bem, obrigado, dos excessos das forças de ocupação, o Complexo sai das páginas policiais para, querendo ou não, ir para as páginas de celebridade.
Mesmo algumas fontes locais admitem o Marco Zero da ocupação para se referir à história do Complexo. Como se tudo antes tivesse sido definitivamente apagado.

Alguém disse que, estudar a História é "observar os erros do passado para não repeti-los no futuro." Pois, se isso é verdade, precisamos buscar algumas fontes pré-ocupação para entender que continuamos sentados num barril de pólvora. Que as ocupações realizadas pelo Governo do Estado não são políticas de segurança pública, debatidas, analisadas, planejadas por especialistas e com cases concretos. Que essas ações são de contenção e remoção de comunidades que podem "ameaçar" as agendas de 2014 e 2016. Que os interesses econômicos e políticos, sustentados e apoiados pelos grandes conglomerados de comunicação estão acima dos objetivos de desenvolvimento local ou segurança.
Estudando a história do Complexo antes da ocupação, é possível perceber a gravidade da ilusão que hoje pretendem fazer a sociedade carioca aceitar como verdade. Seja com árvores de natal, com orquestras sinfônicas, com os teleféricos que não atendem aos moradores, com eventos e brilhantina, ou com mais investimento em exotização. 

Há poucos dias fiquei sabendo que a Glória Perez vai escrever uma novela na qual o Alemão será um dos cenários. A Glória Perez deve ter ganho dinheiro suficiente para nunca mais trabalhar até o fim da vida, e criar um folhetim para o horário nobre que traga personagens caricatos e cômicos, para entreter a família brasileira.

Não que seja negativa a iniciativa. Mas, imagine se o mesmo for feito por exemplo, com a Maré, ou o Jacarezinho. Se a mídia fizesse uma "nova leitura", do dia pra noite, elegendo novos atores e vozes a serem ouvidas. Imagine uma ocupação de repórteres que nunca foram antes nesses lugares. Que não conhecem os que já estavam ali, lutando por uma visibilidade legítima. Imagine uma ocupação midiática que corrobore um discurso de governo, apagando num passe de mágica todas as questões que envolvem os verdadeiros problemas: o tráfico de armas e de drogas, as políticas de segurança pública e as populações faveladas.

Talvez a autora nunca tenha colocado seus pés no Alemão. Quem sabe nunca saiu do Leblon. E quem sabe o faça, se isso for exigido. Mas, de uma forma ou de outra, ela nunca esteve no Alemão registrado nesse documentário, onde os personagens não leem textos, cujas vidas representam o contraditório da cidade, da favela e da vida. 
No Youtube, as 8 partes do filme estão disponibilizadas. 
Recomendo.






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